A Arte do Bem Viver: Um Elogio ao Espírito Aristocrático
“He kept a whole row of pipes there ready loaded, stuck in a rack, within easy reach of his hand; and, whenever he turned in, he smoked them all out in succession, lighting one from the other to the end of the chapter; then loading them again to be in readiness anew. For, when Stubb dressed, instead of first putting his legs into his towers, he put his pipe into his mouth.” (MELVILLE, Moby Dick. Chapter 27: Knights and Squires)
por Victor Sthenyo
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Há uma ciência secreta, uma liturgia “profana”, um evangelho não escrito — e hoje quase ilegível — que atende pelo nome solene e majestoso de Arte do Bem Viver. E digo-vos, caro leitor, com a serenidade dos que já não se deixam embriagar pelas modas, que essa arte não se aprende nas academias modernas, nem se descobre nas vitrines cintilantes do consumo, tampouco se obtém nas pílulas químicas da felicidade sintética. Ela é herança rara, transmitida outrora por palavras, gestos e exemplos; pelas mãos enrugadas dos avós, pelos conselhos sóbrios dos pais e dos mestres, pelos rituais da caça, da pesca, da culinária meticulosa, da contemplação estética e, não menos, pela fumaça silenciosa e sedosa de um puro cubano ou de um cachimbo de briar.
Sim, caríssimo, estou persuadido — e de tal convicção não me demove nem o mais douto dos progressistas — de que o prazer autêntico não é desregrado nem aleatório. Ao contrário, demanda método, rigor e uma educação esmerada dos sentidos. Pois que ninguém se iluda: não há prazer durável onde impera o vício fácil, a fuga química, a excitação instantânea. As drogas, esses atalhos grosseiros ao esquecimento, são interesses de espíritos débeis, de temperamentos frouxos, de almas que, incapazes de suportar o peso e o esplendor da vida, preferem dissolver-se na névoa espúria da alienação.
Não; o Prazer de que falo — e que ouso grafar com maiúscula reverente — é conquista de homens de espírito forte, de sensibilidade cultivada e de vocação aristocrática, no sentido mais elevado e mais antigo da palavra. A aristocracia, aqui, não se refere ao título comprado, à fidalguia de cartório, mas ao culto íntimo das formas, dos ritos, dos símbolos e das virtudes que conferem nobreza à existência.
Talvez conviesse recordar, caro legente — e faço-o não sem uma ponta de severidade escolástica —, que o espírito aristocrático não é apanágio exclusivo das genealogias carimbadas, nem prerrogativa hereditária dos sobrenomes que ostentam partículas em latim ou brasões ancestrais. Ao contrário, nobilitas animi, como ensinavam os antigos, é virtude que se conquista na arena invisível do espírito, onde se trava o combate mais árduo e mais decisivo da existência: o da superação do vulgar, do rasteiro, do utilitário. É por isso que a verdadeira aristocracia não reside nos títulos, mas nos ritos; não nos pergaminhos, mas nas práticas que, reiteradas ao longo do tempo, moldam o caráter segundo uma estética superior da existência. Aristocrata é, pois, aquele que sabe contemplar uma paisagem sem o apetite pueril do turista, que distingue o perfume do latakia da rusticidade de um burley, que reconhece, no ronco grave de um V12 de aspiração natural — com sua sinfonia mecânica de árvores de cames, coletores polidos e carburadores Weber triplos —, não apenas uma peça de engenharia, mas um poema cinético esculpido em aço, bronze e couro. É o homem que entende que conduzir uma máquina dessas não é simples transporte, mas um paso doble de engrenagens secas, relações curtas e acelerações precisas, onde cada giro do tacômetro é uma ode à harmonia entre força e controle. O mesmo se diga daquele que dedica, com igual zelo, à administração de seus negócios, à precisão de seus investimentos, ao trato meticuloso da culinária, à paciência litúrgica da pesca, ou ao jogo cerimonial da caça — práticas que, longe de serem meros passatempos, são ritos de ordenação simbólica, atos de cultivo da alma contra a vulgaridade entrópica do mundo.
E não é sem motivo que as grandes tradições, desde as fábulas esópicas até os épicos homéricos, sempre associaram a verdadeira nobreza não à fortuna recebida, mas ao cultivo das virtudes e ao domínio dos próprios apetites. Ulisses, arquétipo do homem engenhoso e senhor de si, não triunfa pelos deuses que o favorecem, mas pela metis, essa astúcia refinada que só floresce em quem aprendeu a governar-se. Da mesma sorte, nas velhas sagas nórdicas, o jarl não é apenas o detentor da espada ou da terra, mas aquele cuja conduta honra a cadeia anímica dos ancestrais. Ser nobre, strictu sensu, é portanto ser capaz de imprimir ordem onde reina o caos, seja domando a força centrífuga de um diferencial autoblocante numa curva molhada — onde o erro de poucos graus separa a glória do fatal desastre —, seja regulando com paciência alquímica a abertura do acelerador manual de um motor boxer refrigerado a ar, seja, ainda, preparando uma perdiz com o mesmo rigor gastronômico com que Arquestratus concebia seus pratos. Tudo, absolutamente tudo, quando elevado ao grau da excelência, torna-se expressão de uma metafísica do espírito; um rito contra a dissolução; um escudo contra a plebeização dos costumes. A aristocracia é menos um fato biológico do que uma vocação estética, ética e espiritual; é uma elevação do ser que se cultiva, se lapida e se oferece ao mundo como obra de arte viva.
Ora, seria demasiado ingênuo supor que tal filosofia sobreviva incólume neste século inquieto, onde a civilização se ergueu sobre o culto do provisório, do descartável, do vulgar. A cultura hodierna, entorpecida pelo fetiche da “saúde” física, da produtividade mecânica e de uma moral pasteurizada, relegou ao esquecimento tudo quanto compunha a delicada engenharia do bem viver. O que outrora era celebrado — a distinção dos trajes, o apuro da conversa, o gosto pelo gesto bem executado, a devoção às artes, à música, às armas, à cozinha primorosa, ao tabaco e à elegância da caça — tornou-se objeto de desdém, quando não de franca hostilidade. Profanou-se o templo da masculinidade simbólica.
A chama que acendia o cachimbo do avô, que queimava a folha do charuto, que dourava o pato e a perdiz na caçarola, foi substituída pelo brilho frio das telas, pelo ruído histérico das redes, pelo consumo ansioso de prazeres pré-fabricados e pela mortificação dos símbolos tradicionais do homem. Quando o mundo moderno, em sua marcha niveladora, decidiu triturar as diferenças, abolir as peculiaridades, amesquinhar as identidades, não percebeu — ou percebeu bem, e por isso mesmo o fez — que, ao dissolver os atributos do masculino e do feminino, erodia também os fundamentos do próprio Eros, que é, por natureza, jogo de contrastes, dança de opostos, liturgia de diferenças.
Se o homem já não se reconhece como homem — e aqui não me refiro às trivialidades biológicas, mas às prerrogativas simbólicas, estéticas, espirituais e culturais da masculinidade —, resta-lhe o quê? Um simulacro insosso de existência, uma vida desidratada de sentido, desnutrida de beleza e amputada do prazer sublime de simplesmente ser homem. O cachimbo, esse sacramento portátil da contemplação, não é mero objeto utilitário; é uma extensão do espírito meditativo. Sua fumaça — que sobe lenta, espiralada, como as preces dos antigos no altar do Templo — traduz aquilo que Mircea Eliade tão bem descreveu: o gesto ritual que faz do homem um ser capaz de religar-se ao cosmos. Não à toa, no Gênesis (8:21), Deus se deleita com o “cheiro suave” do sacrifício de Noé (Odoratusque est Dominus odorem suavitatis…). A fumaça é, desde os primórdios, ponte entre o visível e o invisível, entre a carne e o espírito.
Cumpre observar — e aqui me permito um breve détour crítico — que esse mesmo Deus, e que é sobretudo o meu Deus, jamais se dignou a manifestar-Se senão envolto em névoas e fumaças. Assim desceu ao Sinai, sob densas nuvens, trovões e coluna de fumaça, conforme narra Êxodo 19:18: “Todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera sobre ele em fogo; sua fumaça subia como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente.”. Não menos eloquente é a visão de Isaías, no capítulo 6, quando ao contemplar o Senhor em seu trono excelso, testemunha que “a casa se enchia de fumaça” (Isaías 6:4), sinal visível da presença que transcende, que oculta e, ao mesmo tempo, revela.
Se Deus, que é Deus, reveste-Se de névoas e fumaças quando deseja comunicar-Se com Suas criaturas — e Fá-lo, segundo atestam as Escrituras, não por acaso, mas por necessidade simbólica —, como poderia eu, pó e sombra, recusar-me a ver na fumaça — que sobe cheirosa, lenta e meditativa — um reflexo claro, embora pálido, desse mistério?
Eis aí a mais sublime das ironias: no afã de libertar-se das tradições, o homem moderno não se libertou de nada — apenas se despiu de seus próprios ornamentos, de seus próprios signos de dignidade. Abdicou da gravata, do chapéu, da bengala, do cachimbo, do gesto cerimonioso, da palavra medida, da honra que não se negocia e da elegância que não se improvisa. No lugar disso, ergueu-se uma caricatura de liberdade: a liberdade de ser vulgar, de consumir sem freios, de exibir-se sem pudor, de embrutecer-se sob o aplauso dos pares.
O que antes era esforço de aperfeiçoamento interior — o domínio de si, a educação dos apetites, o cultivo das artes do espírito — tornou-se sinônimo de opressão, de caretice, de um passado que a nova moral deseja apagar com a fúria dos bárbaros. E, no entanto, paradoxalmente, é precisamente desse passado que emanava aquele perfume raro que hoje escasseia: o perfume da vida bem vivida, da existência que não teme ser ritual, cerimônia, contemplação e obra de arte.
Tal como um carro vintage que só revela sua majestade quando conduzido por mãos habituadas ao silêncio do couro legítimo e à sua história gloriosa, tal como um relógio cronógrafo que não tolera o pulso de quem não distingue o tempo do desperdício circunstancial, também o cachimbo, o charuto, o prato primorosamente elaborado, a conversa inteligente e o gesto polido exigem um contexto: um palco simbólico onde cada objeto, cada palavra e cada silêncio cumprem sua função sagrada na partitura do Bem Viver.
Não se trata aqui de mero capricho estético ou devaneio diletante. A persistência desses ritos — fumar, caçar, pescar, cultivar a precisão dos mecanismos ou o ronco grave de um motor vintage — não é senão um reflexo da própria ordenação divina, que, ao criar o mundo, imprimiu-lhe o selo do cosmos — do ordenado, do harmônico, do hierarquicamente disposto. Quando o homem acende seu cachimbo, tal qual o sacerdote que acende o turíbulo, não está apenas fruindo de um prazer sensorial; está, sem saber talvez, participando de uma liturgia ancestral que o reconecta à ordem perene das coisas. Assim como a engrenagem de um cronômetro de roda de coluna, também a alma dos homens necessita de uma arquitetura interna de precisão, compostura e cadência. A fumaça, nesse contexto, funciona mesmo como o tique-taque metafísico que marca não os minutos, mas os compassos da meditação, da prudência e da gravidade ontológica.
Não é de espantar, portanto, que a masculinidade autêntica — não aquela caricatural dos bravateiros, nem a frágil dos apóstolos da desconstrução — sempre esteve ligada às artes do silêncio ativo (e altivo), do risco calculado e da contemplação operante. Falo da caça, que exige não apenas pontaria, mas uma ascese de espera, paciência e humildade perante a natureza. Falo da pesca, do rito que desde os apóstolos remete à vocação de separar do caos das águas o sustento e, simbolicamente, a verdade. Falo do culto aos motores, onde o homem domina, sem jamais aniquilar, a potência bruta — domando o cavalo de aço com a destreza de quem entende que toda máquina reflete, em última análise, a luta milenar entre a desordem e a engenharia. E, por fim, falo do cachimbo, que condensa em suas volutas aquilo que as rodas, os anzóis e as engrenagens sugerem: que há beleza no domínio, que há glória na paciência, que há santidade no rito.
Fumar um cachimbinho, pois, não é uma rendição ao vício, mas uma rendição ao tempo. E aqui cabe dizer — e que me ouçam os modernos apóstolos do efêmero — que nada é mais subversivo, mais profundamente contrarrevolucionário, do que sentar-se à margem do turbilhão contemporâneo e, serenamente, acender um cachimbo. Assim como o relojoeiro suíço, curvado sobre a lupa, monta as delicadas rubis que servirão de rolamento aos ponteiros — cuidando para que cada dentada, cada eixo, cada mola de tensão cumpra sua missão com rigor de cosmo —, também o homem que pita exercita a mais rara das virtudes modernas: a imperturbabilidade. Fumar é, nesse sentido, uma profissão de fé no cosmos contra o caos, na ordem contra a entropia, no espírito contra a dissolução.
Mas vede, caro leitor — e que o saibam os tíbios, os títeres da modernidade líquida —, que o homem que se recolhe (melhor: que se resguarda, que se recolhe não no sentido do isolamento estéril, mas do recolhimento fecundo) para acender seu cachimbo sob a companhia morna da chuva matinal (ao menos no norte mineiro do meu país-continente), não foge do mundo: ele retorna a si, como quem, saindo da caverna de Platão, dá-se conta de que a verdadeira escravidão é permanecer atado às sombras, crendo-as realidade. A geosmina — esse aroma sagrado que emana da terra molhada, mistura de petricor e reminiscências arcaicas — não é apenas um fenômeno químico, mas um chamado ancestral, reminiscência sensorial de quando o barro, ainda fresco, foi insuflado pelo hálito divino. Cada tragada de uma mistura inglesa, impregnada de latakia, perique e orientais defumados, é uma epifania silenciosa, que se conjuga com o cheiro úmido do mundo, transmutando-se em sacramento de reconciliação com a ordem natural das coisas. Somente quem se presta a estes deleites sabe como são doces e pujantes esses momentos, onde somos simultaneamente testemunhas e partícipes de um concerto divino. A pós-modernidade é incapaz de ouvir o rumor da chuva, de aspirar as essências telúricas da vida. A engenharia social moderna — que, sob uma máscara asséptica de neutralidade, esconde uma ânsia brutal de controle — opera segundo os mesmos princípios que denunciava Xavier Zubiri, ao apontar que a dessacralização do real é, antes de tudo, uma amputação da inteligência da realidade. Ao esvaziar os ritos, ao dissolver as hierarquias simbólicas, ao reduzir tudo a dados, gráficos e bioestatísticas, substitui-se a ordem qualitativa do ser. Ora, o cachimbo — esse pequeno bastião da resistência simbólica — torna-se, então, uma dissidência contradita à manutenção da vida. Não. Fumar não é vício; é insurreição metafísica contra o maquinismo social. Fumar é catártico. Aquele que renuncia a estas ritualísticas, não rara vezes, o faz não por virtude, mas por ter cedido — inconscientemente, em sua maioria — à “lógica” do biopoder, da vigilância, da domesticação das almas.
Dir-me-ão alguns — e não poucos — que exagero, que romantizo o prosaico, que absolutizo o efêmero. Pois bem, acuso-me de tudo isso, e acrescento: não há nada mais necessário, neste século de desencaixes, de descaminho e distopias, do que absolutizar aquilo que ancora o homem à sua própria humanidade. A fumaça do cachimbo — que se enrosca nas manhãs chuvosas, que se mistura ao hálito de chás, cafés e ao murmúrio líquido da chuva — é mais que metáfora; é um cordão umbilical com a Criação. O mesmo cheiro que exala da terra molhada não é senão a voz antiga do cosmos, sussurrando aos homens que, por mais que se afastem, ainda há caminho de regresso, um porto seguro. E quem, senão o homem que se permite esse rito — ladeado pela brisa fria, consolado pela tepidez da xícara e pela robustez do tabaco —, compreende o verdadeiro sentido do existir? No tumulto dos algorítimos, na vertigem dos mercados, na anestesia das pílulas e na assepsia dos ambientes “politicamente corretos”, resta um silêncio que não consola — silêncio de vazio, de ausência. Já o silêncio que acompanha o cachimbeiro não é ausência, mas plenitude; não é vácuo, mas presença intensificada. É o silêncio dos que, como na velha mística hebraica, sabem que o nome de Deus não se pronuncia: aspira-se.
E não se iluda quem pensa que tal postura é mero romantismo ou diletantismo nostálgico. Antes, trata-se de uma rebelião ontológica contra as forças dissolventes que intentam, sob pretexto de saúde pública, de produtividade ou de higienismo moral, amputar do homem seus ritos, seus símbolos e seus espaços de transcendência.
A degradação desse universo não é apenas uma questão estética. É uma tragédia antropológica, um suicídio cultural. Uma sociedade que despreza seus ritos, que escarnece de suas tradições, que reduz a elegância à futilidade e a masculinidade à opressão imaginária, é uma sociedade que cava, com mãos ansiosas — e agourentas —, sua própria cova espiritual.
A Tradição do Bem Viver não é passatempo de dândis, nem capricho de estetas desocupados. É, antes, o mais exigente dos ofícios: aquele que consiste em transformar a própria vida em obra de arte. E, como toda arte séria, exige disciplina, paciência, reverência pelos mestres e horror pelo improviso vulgar. Portanto, sempre estarei ao lado dos cachimbeiros, verdadeiros mestres. Não há, na ordem sensível, manifestação que mais intimamente se enlace ao sentimento do Sagrado do que a fumaça. Pela sua natureza ascensora, evanescente, sempre a demandar as alturas e a esvair-se no etéreo, constitui ela uma alusão imediata, simbólica e perene da própria essência divina.
Arguir-se-ia — e não faltará quem o faça — que o influxo místico reside, antes, no aroma que impregna o olfato do que na visão do vapor que se dissolve. Vã suposição. Por exemplo: conceberia vossa imaginação, ainda que divorciada dos preceitos católicos, o clero augusto da Basílica de São Pedro conduzindo o Santo Sacramento ao perfume invisível de um difusor moderno (talvez até digital, haja vista os recidivos tsunamis tecnológicos), em lugar do venerando turíbulo fumegante, que sobe, se expande e se perde como súplica visível ao Altíssimo? É claro que não.
A tração irresistível que o homem experimenta pelo fumo não se esgota, pois, na mera fruição sensorial; encerra ainda múltiplos e profundos componentes. Primeiro, o efeito psicotrópico, cujo espectro vai do estímulo tênue do tabaco às mais vigorosas evocações do espírito proporcionadas pela contemplação. Depois, o conforto quase litúrgico que dimana da manipulação dos instrumentos de fumar — seja o cachimbo robusto, seja o cílio delicado do cigarro, seja o isqueiro, cuja centelha é, para o fumante, como Prometeu o fora para os deuses. Ademais, o deleite instantâneo que se oferece ao paladar e ao olfato, cúmplices da volúpia efêmera. E, por fim — mas não por último —, a secreta e impenetrável gratificação da própria fumaça, que transcende a matéria e se projeta no domínio do símbolo.
Interrogo, pois: quem, entre vós, acenderia o seu tabaco no escuro? Não; não faria sentido tal sacrílego gesto, pois que fumar sem contemplar a espiral azulada que sobe das brasas, ou sem ver os arabescos cinzentos que a boca modela e entrega ao espaço, seria como rezar sem palavras, ou amar sem olhar.
Lamentem, pois, os seus detratores, ao saber que o fumar é prazer antigo como a própria humanidade — quiçá anterior —, e que, de modo misterioso, tange as fibras mais recônditas de nossa natureza decaída, porém sensível ao consolo. Eis por que se faz refúgio último, lenitivo insubstituível nas horas extremas: ao preso, ao condenado, ao soldado nas trincheiras, ao estudante às voltas com a prova, ao jogador que desafia a sorte — a todos se oferece o fumo como um bálsamo que não pergunta por circunstâncias.
E não só isso: fumar ostenta uma prerrogativa singularíssima entre os prazeres terrenos, a de não excluir, antes, de se casar harmonicamente com outros. Pode-se fumar enquanto se joga, conversa, viaja, bebe, medita ou galanteia. Mais ainda: é epílogo perfeito, fecho natural e apoteótico de qualquer ação que tenha sobreexcitado os sentidos ou inflamado as emoções. Não é por mero capricho que, instintivamente, aspiramos ao cachimbo após um jantar opulento, após as delícias do amor ou quando a razão, exausta, enfim domina o problema que a consumia.
Posto isso, afirmo — sem temor de desmentido — que, dentre todas as fumaças concebíveis, nenhuma se eleva tanto, nenhuma se reveste de tão nobre transcendência, nenhuma melhor depura o espírito e o alça ao que desejaríamos ser, quanto a fumaça do cachimbo. Se assim não fosse, inexplicável seria o apego quase sacerdotal de seus adeptos, cuja devoção é tamanha que mal se dão conta do oneroso sacrifício que tal culto lhes impõe. Nas suas prateleiras, erguidos como batalhões de veteranos, perfilam-se cachimbos robustos, leais, corajosos, sempre prontos à refrega contra o tédio, a angústia ou o vazio. Na mão, conferem a dignidade da posse; na boca, oferecem não só a consciência de si, mas também aquela forma de ousadia serena, cuja natureza flutua entre o requinte extremo e o rude primitivismo — e, às vezes, ambos se confundem; simbiose reforçada. Suas vastas abóbadas lembram as naves solenes das catedrais; suas curvas austeras são baluartes da Tradição. E a fumaça que deles emana — vestimenta de luz e sombra — ostenta-se como a casaca do toureiro, com sua desproporção calculada, que torna mais vivas as cores que a compõem.
O cachimbo, caro leitor, é um festim para os sentidos e para o intelecto. Aos olhos, oferece o deleite da contemplação: seja na linha harmoniosa de sua silhueta, seja no brilho lustroso do veio bem trabalhado. Ao tato, revela, pela elasticidade e pela maciez da madeira, a paciência e a mestria de quem lhe deu forma. Ao olfato e ao paladar, oferece uma sinfonia de notas — terrosas, adocicadas, picantes, cítricas ou balsâmicas — que o fumante experimentado escolhe, combina e harmoniza, segundo o seu estado d’alma ou a ocasião, em arranjos cuja compreensão escapa aos não iniciados.
Não obstante, cumpre reconhecer — sem surpresa, mas não sem pesar — que vivemos tempos de crescente intolerância, e mais: de uma histeria social que se lança, com furor inquisitorial, contra o tabagismo. Por isso mesmo, como humilde atleta dessa arte veneranda, sinto-me no dever, senão moral, ao menos estético, de tomar público assento neste debate tão incômodo quanto necessário, e de fazê-lo sob os auspícios da Verdade — que é, foi e sempre será Una, ainda que a Ciência, com seus bisturis, microscópios e estatísticas, teime em fracioná-la.
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